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Picadinho de filet mignon do Chef

14/12/23

Se eu tivesse que fazer uma lista das coisas que eu mais amo no mundo, têm três itens que com certeza estariam presentes - comida, design e música. The Bear é uma série que consegue dançar entre esses três tópicos majestosamente. Fazendo um resumo injusto da série, ela é sobre a história de um dos melhores chefes de cozinha do mundo tentando transformar o restaurante podrão do irmão e coordenar uma equipe de pessoas aparentemente incordenável.  No meio disso tudo tem umas referências de design e um trilha sonora nota mil. É tão bom quanto comer um belo prato de comida ouvindo sua música favorita. Na verdade não, a sensação não tem nada a ver, 90% da série é um suco de ansiedade e angústia e os outros 10% é uma sobremesa bem equilibrada que te faz derramar lágrimas de emoção como recompensa. O ponto é que ela entrega o sabor que foi desenhada pra entregar, que pra mim é a definição de uma boa produção.

A série é verdadeiramente linda. Ela mostra de um jeito muito delicado e nada clichê cada membro da equipe do restaurante encontrando a paixão pelo próprio trabalho e entendendo o valor que existe em se dedicar a um projeto. O que antes era um ambiente repleto de ego e orgulho se torna um templo de disciplina, dedicação e aprendizado, onde todos os agentes trabalham em função de um objetivo comum - servir boa comida. 

Na segunda temporada tem uns dois episódios que se passam em Copenhagen, cidade casa de um dos melhores restaurantes do mundo, o Noma, onde o protagonista trabalhou por um tempo. Esses dois episódios acompanham um membro da equipe que é enviado pra lá pra estudar confeitaria, acompanhando sua rotina no trabalho, restaurantes que frequenta, e paisagens nórdicas. É um pedacinho bem pequeno mas muito saboroso do que é a capital da Dinamarca, tão saboroso que me deixou com um gostinho de quero mais.

Final de semana passado eu tive a chance de provar esse prato todo e fui pra Copenhagen (essa é uma daquelas frases absurdas que fazer intercâmbio na Europa te dá o privilégio de dizer com uma certa normalidade). Uma coisa que eu aprendi nessa viagem é que Copenhagen é uma cidade extremamente cara, mas mesmo com um orçamento baixo pode-se comer muito bem por lá, literalmente e figurativamente (mais o segundo do que o primeiro hehehe). Venho aqui contar um pouco dos sabores que eu senti.

O primeiro foi numa cafeteria que eu fui sozinho no último dia. Sentei no balcão do lado de um cara que tava de fone e com um MacBook Pro 2022 14 polegadas aberto. Era ruivo e tinha um cabelo grande, preso num coque. Ele exalava à hipster. Não suficientemente na frente dele tinha um moleskine e um café coado, combinando com o plano de fundo do desktop - a foto de uma xícara de café. Achei uma figura muito interessante e, como alguém que não tinha nada melhor pra fazer e não queria começar o dia entupindo o cérebro de dopamina vendo TikTok, fiquei prestando atenção no que ele fazia no computador. Era uma mistura estranha entre uma planilha de excel e uma página no Safari. Ele atendeu uma ligação no fone de ouvido e, entre algumas frases inaudíveis, ouvi ele falando sobre “melhorias na equipe” e “entregar os produtos”. Deu pra perceber que ele tinha algum cargo importante em alguma empresa que vendia produtos físicos - ótimo, reduziu minhas opções pra casa dos milhares. Depois de talvez ter ultrapassado um pouco o limite da invasão de privacidade, consegui ver o nome do site que ele entrava, era April alguma coisa. Abri o Instagram, digitei April e a primeira sugestão que apareceu (dale algoritmo) foi @aprilcoffeecph. Não poderia ser mais preciso. Descobri que o cara do meu lado era o fundador de uma empresa de café em Copenhagen com 65 mil seguidores, uma unidade recém-aberta na Coreia, vários projetos multidisciplinares de vestuário, e algumas cafeterias brasileiras como seguidores em comum. O hipster desconhecido do meu lado virou uma celebridade. Como ele tava em call, tive que lidar com a frustração em ter que conter as mil perguntas que eu faria pra ele, mas fiquei satisfeito em só presenciar aquele momento. Uma pessoa apaixonada por café, dono de uma empresa de café, fazendo uma reunião sobre café enquanto bebe café em uma cafeteria. É óbvio que o plano de fundo dele não poderia ser outra coisa que não uma xícara de café. E aí quando eu sai da cafeteria e passei na frente da fachada de vidro do balcão, vi que no MacBook dele tinha um adesivo escrito “The beauty is on the inside”. De fato it is.

No dia anterior, recém abandonado pelos meus amigos que voltaram antes, decidi ir num restaurante de ramen que alguém que conheci em um museu tinha me indicado. Usufruindo do privilégio que ir comer sozinho te da (em troca da insegurança inicial de que tá todo mundo te julgando), pulei a fila de cinco pessoas e fui diretamente em direção ao meu melhor amigo - o balcão. Dessa vez sentei do lado de um cara que chegou ao mesmo tempo que eu no restaurante. Ele tinha uma estética bem leste Europeu. Era magro, com cabelo curtinho e uma aparência meio fria. Só aparência mesmo, porque depois que dirigi a primeira palavra a ele, soltou um sorrisão bem simpático. Conversamos um pouco e fomos fazer o pedido no caixa. Sempre que eu como Ramen peço o mais simples, com o caldo a base de shoyu, mas a novidade da situação me deixou aberto a seguir a recomendação do meu novo amigo (não o balcão), e eu pedi o com base de Misô. Voltamos pro terceiro elemento (dessa vez o balcão mesmo) e continuamos conversando. Ele me disse que já morava em Copenhagen fazia 2 anos, e trabalhava como barmen. Minha cabeça ocidental já assumiu que esse era um emprego provisório, e perguntei pra ele se ele gostava de ser barmen ou tinha outros planos pro futuro. Ele me respondeu que amava coquetelaria e era aquilo mesmo que ele queria fazer, mas que também gostava muito de café e já tinha trabalhado como barista antes. O papo foi interrompido, ou melhor, massacrado pelo ramen que chegou. Ficamos os dois curvados por 15 minutos sem trocar sequer uma palavra, apenas se olhando de vez em quando e fazendo cara de como quem é o Jay-Z ouvindo os beats do Kanye West pela primeira vez. Comi o melhor ramen da minha vida. Viajei universos inteiros naquele caldo, e só tinha a agradecer ao meu amigo (dessa vez os dois) por aquela refeição. 

Voltando pra última manhã, fui numa loja de pôsteres que tinha marcado no meu guia pra conhecer e ver se encontrava alguma coisa pra levar pra cada membro da minha família. Fui recebido com um aviso amarelo na porta “Sale 50% off”. Então entrei, joguei minha playlist no fone e me preparei pra passar um bom tempo folheando as sanfonas de poster - se você nunca fez isso, é como procurar discos de vinil gigantes, e se você também nunca fez isso, é como passar as páginas de um livro mais gigante ainda na horizontal. Viajei entre as categorias de Museus Internacionais, Arte Abstrata, Fotografia, Vintage Advertising etc. Era Warhol atrás de Kadinsky, atrás de Rothko com umas fotos de mau gosto de uns pinguins e leões no meio. Quando eu encontrava alguma coisa interessante, puxava a pasta e pedia para a atendente separar para mim. Todas as quatro vezes que eu fiz isso, sem exceção, ela me respondia alguma variação disso: “nossa, esse é muito lindo! Boa escolha” com um sorriso no rosto e um tom de simpatia inigualável. Disse que gostei muito do interesse dela pelos impressos, e perguntei se ela era dona da loja. Me respondeu que não, mas era artista gráfica e produzia alguns pôsteres autorais. Me mostrou suas artes, trocamos Instagram e na hora de pagar ela foi a primeira pessoa nos meus 3 meses de Europa que me perguntou voluntariamente se eu queria Tax Free. Sim, por favor.

Depois disso, antes de encontrar uma amiga minha que tá morando lá, fui visitar uma loja independente de livros que tinha encontrado na internet e parecia interessante. A loja abria às 11:00 e eu cheguei lá as 10:58. Como quem as vezes esquece que o ser humano é um animal e não uma máquina, fiquei esperando a loja magicamente acender as luzes e abrir as portas depois de dois minutos. Não aconteceu, e eu fiquei na calçada oposta por mais um quarto de hora segurando meu tubo de pôsteres e esperando ansiosamente a figura que apareceria com as chaves. Esse momento veio, e uma mulher simpática chegou se desculpando pelo atraso e agradecendo pela paciência enquanto passava os vasos de planta de fora pra dentro. Em dois minutinhos me recebeu, com as luzes propriamente acesas e uma música tocando de fundo, e eu entrei como se ela tivesse me convidado para conhecer o apartamento dela. Fiquei encantado com aquele lugar. Nunca vi nenhuma livraria parecida. Era um espaço projetado de forma tão delicada e espontânea. A curadoria de livros era claramente criteriosa de acordo com os gostos pessoais da dona, e divididos meticulosamente. Uma das prateleiras tinha uns 5 livros de capa branca com títulos que de alguma forma faziam referência à cor branca. Uma outra mesa só com publicações sobre design de livros (bem meta-linguístico do jeito que eu gosto). Outra só sobre técnicas de costura e bordado. Tudo isso intercalado com pequenas intervenções de produtos como lapiseiras bem desenhadas, fita adesiva de papel colorido, cadernos de croqui japoneses, tesourinhas de metal etc. Não existia a sessão “papelaria”, esses objetos só apareciam casualmente do lado de um livro que você parou para folhear, posicionados com tamanha precisão que deixava em evidencia pra dona quando alguém tirava um deles do lugar, ou pelo menos inclinava 10 graus fora do eixo. Era lindo, dava pra ver a mão daquela mulher tocando todos os cantos daquela sala. Naturalmente elogiei o trabalho dela e conversamos um pouco. Ela me disse que era formada em design e atuou por bastante tempo na área antes de abrir a loja, 15 anos atrás. Contei do projeto de um impresso que eu tava desenvolvendo e ficamos debatendo sobre design de livros e como eles influenciam na interação e relação que criamos com a leitura. Foi conversa pra um outro texto. Parece idiota, mas fiquei realmente emocionado de estar naquele lugar, quase chorei mesmo. Falei isso pra ela e ela confirmou o sentimento dizendo que também sentiu uma energia muito boa e perceptível. Passei 30 minutos na loja e sai de lá com uma fitinha adesiva verde do tom do grid da galeria Dˆ. Comprei o produto mais barato da loja, mas de jeito algum para ela isso significou não embalar num saquinho com o logo do lugar e escrever um recibo à mão no estilo comanda de PF do Brasil. Guardo esse recibo com muito carinho dentro do meu caderno e uso a fita adesiva pra colar qualquer papel com minhas ideias na parede. Fico seguro de pensar que as mãos cuidadosas daquela moça não vão deixar elas cairem.

É muito difícil pra mim descrever o que eu senti em todas essas situações que eu descrevi (talvez com detalhes demais). Existe algo contagiante em se cercar de pessoas apaixonadas pelo que fazem e frequentar lugares criados e também frequentados por esse tipo de gente. É como se a paixão transcendesse e se espacializasse, e aí batesse e refletisse em todas as pessoas do lugar e formasse um grande brilho amarelo e intenso. Talvez seja isso que explica o protagonista de The Bear ter conseguido transformar o podrão do irmão. E é isso também que tá me fazendo ser mais criterioso quanto aos lugares que eu frequento.

Tem um texto do Paul Graham em que ele é extremamente preciso em definir o termo bullshit como “the junk food of experience”. Aquela coisa que traz algum tipo de dopamina/entretenimento mas que te esvazia (nos dois sentidos) logo depois. Partindo dessa definição, posso dizer que o que eu vivi em Copenhagen foi o total oposto disso. Minha alma foi nutrida com um prato de picadinho de filet mignon cozido por horas e horas numa panela Le Creuset laranja, acompanhado de arroz e feijão, do lado de uma farofa de banana e embaixo de um ovo caipira no ponto perfeito. Empratado numa louça de porcelana dinamarquesa, servido com uma cerveja trincando e entregue na minha mesa pelo ex-chef do Noma. Que delícia.